Lembrança
no sentido daquilo que, vivido, valeu e ficou e está ainda agora na memória
como um bem da existência e fazendo parte do que “sou”? Nesse sentido, minha memória guarda as
primeiras histórias “lidas” através da voz de minha mãe, quando juntava a
filharada na sua cama enorme e narrava as mais belas histórias do jeito que lhe
ficaram na memória. Depois é que fiquei sabendo que muitas daquelas histórias
estavam em livros de contos de encantamento de Andersen, dos irmãos Grimm, de Perrault,
de Câmara Cascudo... coisas desse tipo,
e que minha mãe nos contava muitas vezes transformadas, bem a seu modo, muitas
vezes misturadas a suas histórias pessoais, fatos de sua infância e
adolescência, narrados como contos de fadas ou de terror, mas sempre de
encantamento. Eu pelo menos a ouvia, completamente encantado por aquela voz, por
aquelas histórias. Posso citar como exemplo uma história narrada ao modo dela, que
me acompanhou por toda a infância e que ainda hoje trago na memória como um bem
dos encantamentos poéticos que fazem parte do que “sou”. A história era a do
Rumpelstiltskin, que ela dizia e nós repetíamos “Rumpleststequin”, e que até
hoje me salta da memória e se “presenta” na voz dela. Parece-me estar ouvindo, vendo ela
contar, fazendo baixar aqueles personagens, aquelas lendas. Uma Xamã, no círculo mágico, a minha mãe. Enfim, a minha primeira lembrança de leitura
são as histórias transmitidas oralmente por minha mãe. Mais grandinho eu
descobri e passei a ler aquelas histórias direto nos livros, grandes, bonitos,
de capa dura, coleções inteiras de contos desse tipo, que meu pai trazia pra
casa. Lia e era a voz de minha mãe que narrava aquilo pra mim, sua voz e imagem
saindo direto das páginas daqueles livros. Fora desse círculo mágico que minha
mãe criou pra nós, a primeira “coisa” que li e que me transformou de vez em
amante-escravo da magia que os livros guardam foram os poemas de “Mensagem”, do
Fernando Pessoa. Todo o livro me tomou, mas na memória sempre me vem o impacto
que me causou a leitura daquele poema em que ele fala do mostrengo que, voando na noite do breu do fim do mar, vem
interpelar aquele que ousou entrar em suas cavernas de tetos negros do fim do
mundo. E a voz que lhe responde: “El-Rei D. João Segundo!”. Fernando Pessoa, assim, me impactou, foi o
segundo Xamã a me prender em um círculo mágico. Até hoje me lembro da sensação
de encantamento que o poema me causou e que me prendeu, encantado para sempre,
no mundo das palavras escritas.
São muitas
outras as histórias que me ficaram, que constituem um bem em minha memória, meu
baú de encantamentos, o “tesouro da juventude” que me acompanha e que faz parte
do que “sou”, da minha existência, da minha travessia... e que sigo
alimentando, enriquecendo. Vou citar como exemplos primeiros, além das
narrativas de minha mãe e do “Mensagem” do
Fernando Pessoa, as histórias do Hermann Hesse, em especial “O jogo das contas de vidro” e “O lobo da
estepe”. Julio Cortázar, outro Xamã, com seus contos e romances me tomou
inteiro pra si, dentro do seu círculo mágico, e até hoje é assim. Clarice Lispector,
a “bruxa fera” do encantamento, um perigo constante para os leitores, me levou primeiro
para “Perto do coração selvagem”, me hipnotizou com a “A paixão segundo G.H” e
“Água viva”. Depois disso, me vi preso inteiramente no círculo mágico de
Clarice... ou fui eu a levar tanto
Cortazar quanto Clarice pra dentro do
círculo mágico em que já me encontrava preso... inescapável. Machado de Assis foi outro entre meus xamãs,
por tudo que li dele, mas especialmente por Dom Casmurro, que considero uma das
mais bem construídas e fascinantes narrativas do mundo, ocidental ou oriental
que seja. Por fim, cito o Guimarães Rosa, que tomou o lugar de “Grão Xamã”, o
que passou a presidir tudo no meu círculo mágico, o meu Grivo, o Miguilim em
mim. A travessia do grande sertão se faz
em todas as suas narrativas. Grande sertão: veredas, As margens da alegria, Os
cimos, A terceira margem do rio, O recado do morro, A hora e vez de Augusto
Matraga, Sarapalha, Cara-de-Bronze... ah,
é tudo que vem dele; tudo que forma o sertão dendagente, uma travessia única pra quem, com toda a boa coragem – a coragem de quem
respeita o medo, sabendo que ele é parte do que nos constitui, do que é mesmo dendagente, parte inseparável da coragem que nos leva e da
luz que nos guia – enfrenta a proposta de atravessar o Liso do Sussuarão, de ganhar ventura na aventura de se perder
para se encontrar (sempre presos no círculo mágico dos xamãs-narradores, dos
nossos feiticeiros), adultos/crianças
brincando livres, com a gravidade com que brincam as crianças, no reino da
palavra em estado de arte.
A escola me
faz lembrar o tempo em que devorei livros, em uma época do primário, quando a
diretora teve o bom senso de criar um “tempo semanal de leitura”. A professora
nos passava um catálogo, escolhíamos um livro. Ela levava pra nós e nos deixava
lá quietinhos, lendo. Ficava quase toda a turma. Alguns iam pras boas
brincadeiras do pátio da escola. Lembro
que os que ficávamos, mergulhávamos nos barulhos que saltavam de cada página,
tendo ao fundo a algazarra boa dos colegas que brincavam no pátio ao lado. Um
tempo bom aquele. Uma ilha da fantasia pra mim. Li muito Monteiro Lobato, suas
narrativas do “Sítio”. Lembro-me bem de ter
lido “Os meninos da Rua Paulo”, do Molnár; “O conde de Monte Cristo”, do Dumas;
e por aí eu ia. Já no antigo “ginásio”, me lembro dos textos ou fragmentos de texto
que líamos, em “leitura silenciosa”, no livro didático (lembro direitinho o
livro didático que me acompanhou nas quatro séries do ginásio; não era o mesmo, mudava a cada série, mas
todos tinham capa dura com a mesma linda
foto da estátua do Machado em frente à Academia). José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo,
Castro Alves, Gregório de Matos Guerra (adorei desde sempre o Boca do Inferno),
os primeiros contatos com Machado de Assis, e outros por aí, chegaram-me assim,
em “leituras silenciosas”. Eu adorava esses momentos das aulas de Português e
achava o resto chato. Lembro vivamente a vez em que li uma história do “pombo
enigmático” que dizia à pomba amada, aflita
com o atraso de seu pombo amado, coisas mais ou menos assim: “A tarde era tão bonita que eu vim andando; era um crime voar, eu tinha
de vir andando.” ou “Eu tardo mas ardo. Olha que tarde!”. Tenho bem viva na memória a primeira vez que,
encantado, li essa narrativa do Paulo Mendes Campos. Círculos mágicos o “tempo
semanal da leitura” e o momento da “leitura silenciosa”, na escola. Foi assim.
Eu acredito
na influência das narrativas na história da humanidade. Tenho pra mim o ato
primordial de contar e ouvir histórias como ato fundador do homem e do mundo.
Sendo assim, acredito que, no plano individual, a leitura influi, sim, nas escolhas, nos caminhos de cada um... para
o bem e para o mal e repito: para o bem
e para o mal. Além disso não vou. Não
sei falar sobre a questão, que envolve individualidades, peculiaridades, escolhas,
circunstâncias individuais...
O escritor
quer tudo. O leitor quer tudo. Cada
leitor lê num mesmo livro o seu próprio livro. Agora eu pergunto: o compositor
Cartola fez leituras em livros? Não sei, mas certamente ouviu contar e contou
muitas histórias. A escritura e a leitura querem e podem muito. A oralidade, o
ato de narrar, de compartilhar histórias nem sabe bem o que quer, mas pode
muito mais.
Aqui eu
lembro o Caetano e peço a licença de o parodiar (mas paroamar): O que pode no
que quer esta língua?
Leio um pouco
de tudo, sem qualquer disciplina. Sou meio levado nisso. Leio o que me pega e
me leva. Gênero não me pega, nunca me pegou.
Cronópio na teia da aranha
Captar e capturar. Captamos o alcançável e o
capturamos. Olhamos o capturado, à distância, para ver-lhe o todo. Aproximamos
a vista, focamos-lhe os detalhes. Falta-lhe alguma coisa, algo ficou de fora,
algo que nas antenas de captação percebêramos, mas que na teia de captura não
caiu, da rede de captura escapou. Frustramo-nos mais uma vez e outra vez
recomeçamos. Mais uma vez preparar a rede; mais uma nova teia tecer. Não há como aperfeiçoar as antenas; são as
que temos. Novas tecnologias só nos serviram até aqui para replicar, repetir o
mesmo, em novos materiais. Aprimorarmo-nos, refinar o uso, tudo isso talvez só
nos tenha afastado mais e mais do primor, do encantamento primordial, do que
está na origem das primeiras criações, do que esteve nos primeiros criadores,
os únicos originais.
Clarice e
Cortázar foram os que mais se aproximaram de ser, no meu entendimento, o
perfeito captor, o que capturaria a coisa mesma. Penso que uma, por ter a
clareza no nome; outro por ter o corte preciso. Foram, pelo menos entre os tão
poucos que li, os que me levaram perto, deixaram-me por um triz; mas algo, num
átimo, escapava-me e me frustrava, achando que eles haviam chegado lá e eu, o
sempre tão limitado leitor-captor, é que não conseguira acompanhá-los ou apanhá-los. Mais uma vez recomeçava.
Demorou para que eu percebesse que o que, para mim, era chegar tão perto, para
eles era ainda nem de longe sequer roçar
a sombra da ponta da cauda da besta; era apenas manter-se, em remotíssima
órbita, ao largo do mistério.
Aqui
ficamos, eu-eles-nós-todos, no breu da ainda não-caverna no centro do nada que
é tudo no caos. Origem e destinação: o que nunca saberemos é o que toma mais
espaços na mente humana. Um cão apenas olha o fundo negro do céu estrelado e
ladra; por vezes, uiva para a lua cheia. Não é vão o pensamento, não é vã a
linguagem; vão vaníssimo é este curto espaço-tempo que nos é dado entre
nascimento e morte e que, numa ânsia somente humana por eternidade, vamos
preenchendo com idéias, com zilhões de palavras, acumulando-as em infinitos
sítios de memória, resguardando-as em monumentais babélicas bibliotecas, numa
tarefa grande demais para tão curto espaço-tempo, mas tão vã aquela quanto
este.
E salve Cartola! E viva Guimarães
Rosa!