Memória da Palavra é um blog que traz a trajetória de leitura de pessoas que estão no
mundo letrado. Os relatos trarão experiências que nos permitirão pensar na
perspectiva humanizadora que a leitura traz. Qual é a sua primeira memória de experiência com a leitura? Este projeto teve início em 2012, primeiramente, com o objetivo de virar um livro. Agora lanço este trabalho nesta versão eletrônica, a dinâmica é assim: entrevisto pessoas sobre sua experiência com a leitura, suas lembranças, o que marcou etc. e tal. Quer participar? Entre em contato...
Nesta primeira postagem, publico uma entrevista com o jornalista Sérgio Cabral que me recebeu gentilmente e que me deu a certeza de que a leitura faz o homem.
Sérgio Cabral (Jornalista)
História do Mundo Para Crianças de
Monteiro Lobato, esse foi o meu primeiro livro, minha primeira memória de
leitura foi essa, isso foi em 1948 exatamente, eu tinha 11 anos. Eu estava no
colégio interno, um colégio que foi fundamental pra mim. Eu não vou contar
minha história da infância porque tem um lado de pobreza e drama, não quero me vender
com esse lado. Como diria o político Arthur da Costa e Silva: “eu me fiz por si
mesmo”. Meu pai morreu muito cedo, deixou três filhos e eu fui para uma escola
pública interna para crianças pobres, aqui no Rio de Janeiro, havia uns 3 ou 4
colégios assim, coisas do Getúlio, que infelizmente desapareceu.
Na
escola
Nessa escola eu ficava o dia
inteiro, estudava...foi fundamental pra mim essa escola, chamava-se Escola
Moreira e lá tinha uma biblioteca, e esse foi o primeiro livro que eu peguei
pra ler. Havia uma professora, Elza, que recomendava a leitura para seus alunos
e, modéstia a parte, especialmente pra mim, afinal, em todas as turmas eu era o
primeiro lugar, ou o segundo, mas sempre ali me destacando, e ela tinha um
certo carinho por mim. E daí veio o fascínio de ler. Nesse período eu já
escrevia. Anos mais tarde, eu já jornalista, já pai, avô, fui fazer uma
palestra no Instituto Bennett e encontrei um ex-professor chamado Oswaldo de
Assis Gomes, professor de Matemática, que me levou uma cópia de uma dissertação
que eu fiz no colégio interno, e eu me lembro que eu tinha 9 anos quando
escrevi esse texto cujo tema era: O que você quer ser quando crescer? Eu disse
que queria ser Astrônomo, Radialista ou Jornalista. A Astronomia entrou porque
eu achava que dava para escrever sobre esse assunto..., mas eu já queria ser
jornalista; depois na adolescência, já não era bem jornalista, eu queria ser
escritor, até que eu fui convencido que no Brasil ser escritor não é uma
profissão porque eu não poderia sobreviver só escrevendo, a não ser que você
seja um Jorge amado ou um Érico Veríssimo. Quando eu decidi ser jornalista, foi
porque eu continuaria escrevendo, mas ganhando salário.
Tem um segundo livro que eu não
lembro exatamente qual era, mas foi um livro que me marcou pelo tema: era algo
ligado a estrada de ferro, mas não sei o título.
Eu me tornei leitor mesmo foi na
adolescência. Eu morava num bairro muito pobre, Cavalcanti, subúrbio do Rio de
Janeiro, meus amigos eram humildes e tinha uns que gostavam de ler. Quando
nossas mãe dizem: “ande com os bons e serás um deles”, isso é verdade. Foi por
influência desses amigos que comecei a tomar gosto pela leitura. Foi aí que comecei
a descobrir a Literatura. Eu não parava de ler, descobri muita coisa mesmo, li
muito. Nessa fase, eu não lembro exatamente qual foi o primeiro livro, mas sei
que o livro que me marcou muito foi “Servidão Humana”, de Somerset Maughaum, me
lembro de nomes de personagens, de passagens do livro, foi um livro que ficou e
eu tinha uns 13 anos.
Lima Barreto – um autor
Mais tarde um pouco, eu estudava em
uma escola que ensinava um ofício, veja só, eu sou formado em eletricista, hoje
não sei trocar uma lâmpada, pois bem, mas foi nessa escola que além de aprender
uma profissão, eu ganhava o equivalente a meio salário mínimo. Foi com esse
dinheiro que eu comprei uma coleção de Lima Barreto. Esse foi um autor que me
encantou, foi uma paixão que não abandonei até hoje.
De um tempo pra cá, eu me fixei em
ler biografias e memórias, e Rio de Janeiro. Tenho uma vasta literatura sobre o
Rio de Janeiro. Antes mesmo de me tornar autor de biografias eu já lia o
gênero. Uma biografia que me marcou muito foi a escrita por Francisco de Assis
Barbosa, escreveu sobre Lima Barreto, uma obra prima; essa seria uma biografia
que eu gostaria de escrever quando crescesse. Há outras biografias muito
interessantes também, como eu escrevo sobre música, meus personagens são do
universo musical, teve uma que eu gostei muito que foi sobre Louis Armstrong de
um americano chamado James Lincoln Collier.
Personagens Marcantes
Sem dúvida, Capitu é uma das
personagens que marcaram minha vida de leitor. No livro Servidão Humana tem
duas: uma Philip Carey e a outra Mildred. Tem trechos, personagens de livros
que deixam rastros, por exemplo, a abertura do livro “O Ventre”, de Carlos
Heitor Cony, é inesquecível. Há uma literatura sobre Rio de Janeiro que sempre
leio, Machado de Assis, apesar daquele ar inglês, é carioquíssimo. Sem exagero,
acho que li umas dezoito vezes o Dom Casmurro.
Ler é importante
Eu concordo inteiramente com Ziraldo
que diz que ler é mais importante que estudar. Vejo isso entre os meninos que
cresceram comigo; aqueles que gostavam de ler estão bem, aqueles que só tiravam
nota alta não estão tão bem. Ler é fundamental.
Poesia
Eu gostaria de ter mais prazer em
ler poesia. Leio poesia, mas gostaria de ler mais. Quando jovem eu pertencia ao
Partido Comunista. Fui mandado para Moscou para um congresso, foi uma época
boa, conheci Leningrado, enfim, conheci parte da Rússia. Na volta, eu ia para
Paris e, no aeroporto, procurei um livro para ler e encontrei um livro de
Nicolas Guillén, de poemas. Comprei e fui para o avião. Abri o livro e só parei
em Paris. Isso me fez pensar em duas coisas: eu gosto de ler poesia e esse cara
é bom, e ainda, é um poeta à prova de medo de avião, porque na época eu tinha
medo de avião e não consegui parar de ler, nem percebi que estava ali dentro.
Mas o melhor ainda está por vir. Cheguei a Paris, peguei um táxi e fui para um
hotelzinho vagabundo lá no Quartier latin. Cheguei em frente ao hotel, paguei o
táxi e avisto do outro lado da rua o Nicolas Guillén, cercado de gente; na hora
não acreditei, deixei minha mala na portaria do hotel, atravessei a rua e fui
falar com ele. Me apresentei, disse que era brasileiro e que tinha vindo no
avião lendo o livro dele e queria uma dedicatória. Ele me perguntou de onde eu
era... Ao dizer que era do Rio de Janeiro, me perguntou se eu conhecia o
Vinícius de Moraes; contente, eu disse que sim, que era meu amigo, então, ele perguntou
meu nome e começou a escrever a dedicatória: para o Sérgio Cabral, com um
abraço para Vinícius de Moraes. Anos depois eu fui a Cuba para fazer uma
palestra sobre Música Popular Brasileira e ele estava na plateia, o que me
rendeu a primeira página do Jornal Granma, não por minha causa, mas porque
Guillén foi assistir à palestra. Nessa ocasião, nos encontramos, conversamos,
ele era um ótimo papo. Uma das coisas que ele recordou foi sua vinda ao Brasil
na época do carnaval. Ficou hospedado na casa de Portinari e ao sair na rua viu
um bloco e ficou encantado, nesse momento, ele repetiu com aquele sotaque o
samba: “Um dia, encontrei Rosa Maria, na beira da praia...”; já em uma outra
vinda ao Brasil, ele foi entrevistado por Tulio de Lemos (teatrólogo, produtor
de televisão, responsável pelo grande sucesso televisivo “O Céu e o Limite”),
uma grande jornalista, uma grande figura, que tinha um programa de entrevistas
em São Paulo, ao apresentar o poeta
disse: hoje temos a honra de receber, a alegria de contar com a presença um
grande poeta, esse extraordinário poeta cubano Aristides Guillén, pronunciei
seu nome certo? Perguntou. Si, si, pero em Cuba Aristides se pronuncia
Nicolás...
A não leitura – uma pequena história
maldosa
Eu trabalhava no Jornal do Brasil, tinha uma página às quintas-feiras e, por isso, recebia muito disco e
muito livro, e isso era um tormento porque eu deixava em cima da minha mesa e
quando virava as costas, alguém roubava, ou seja, eu tinha que ter cuidado:
botar na gaveta, trancar, enfim, um cuidado a mais, mas me lembro que deixei
um livro de Osvaldo Orlando muito tempo na mesa e ninguém roubou. Conclui que
Osvaldo era à prova de roubo.