A minha primeira lembrança de leitura
está ligada às letras recortadas de jornais e coladas em papéis que uma tia
professora me apresentava para ensinar-me a ler. Ela partia do alfabeto para
construir as palavras. Isto se passou no final dos anos 40.
Minha família sempre teve intimidade
com palavras e livros. O avô por parte de mãe era jornalista e nas primeiras
décadas do século XX criou um jornal de pequena circulação chamado "O
Suburbano". Suas três filhas estudaram na Escola Normal, o Instituto de
Educação, que na época era uma das melhores escolas do Rio de Janeiro.
Posteriormente, minha mãe, Josefa Magalhães e Silva, foi professora catedrática
de Filosofia da Educação na época áurea do Instituto de Educação, entre os anos
40, 50 e 60 do século XX. Meu pai, José Dauster, médico e clínico geral, por
prazer, traduzia contos do francês. Não por acaso, meu irmão Jorio Dauster,
embaixador de carreira, é tradutor de grandes autores entre os quais Vladimir Nabokov,
Ian McEwan e Phlip Roth. Uma das minhas irmãs, Bluma, escreveu um romance. Bruno,
meu irmão, está escrevendo suas memórias relativas aos anos de chumbo. Todos os
irmãos e meus filhos, José, Bruno, Barbara e Tatiana são grandes leitores. Barbara,
minha filha, está exercendo-se nos caminhos da tradução e a nora, Lourdes, é
professora nesta área e tradutora. Então, no começo desta história vejo meu pai
e tenho forte lembrança das coleções da Editora Globo, de Porto Alegre, que
acredito fez um trabalho pioneiro na área de tradução e publicação nos anos 40
no Brasil, história que deveria ser contada.
Tive na infância e juventude uma casa
povoada por livros e leitores. Assim, eu e meu marido, Pedro Garcia, poeta,
antropólogo e professor universitário, continuamos com livros por todos os lados.
Da primeira fase, lembro-me das
coletâneas publicadas pela Editora Globo contendo e divulgando os melhores
contos de diferentes culturas: russos, franceses etc. Recordo-me ainda de toda
a coleção dos romances de Dostoievski, Tolstoi, Stendhal, Flaubert, Zola, Balzac,
Conrad, Faulkner, Steinbeck, Hemingway, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Veríssimo,
Clarice Lispector, Cecília Meirelles...ao alcance dos filhos. Minha mãe, em
especial, amava os poetas brasileiros e portugueses. Lá encontrava os livros de
Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Dela, a família tem a primeira versão de um
romance não publicado.
Ainda criança li "As quatro
raparigas", de Louise May Alcott e todos os romances da Condessa de Ségur
maravilhosamente ilustrados. Lembro-me também da bela edição de uma história
"infantil" chamada "O Negrinho do Pastoreio" e de José de
Alencar. "Cobra Norato" de Raul Bopp, ricamente ilustrado, era
cultuado na família. Guardo até hoje esse exemplar. Além disso, adorava ganhar
de presente os almanaques de capa dura com histórias em quadrinhos e as
revistas com histórias românticas e ilustradas como Grande Hotel, uma
fotonovela dos anos 1950.
Posso dizer que era uma criança e
jovem que gostava de ler e, certamente, fiquei marcada por esses autores. Ao
lado desses livros, os musicais americanos da época como "O mágico de
Oz", "Cantando na chuva" e outros do gênero, de alguma forma,
todos, em determinados momentos, modelaram minhas emoções, sentimentos, atitude
e valores. Então, acredito que as leituras influenciam a visão de mundo e as
escolhas que fazemos na vida, até de forma inconsciente.
As leituras, ao lado das experiências,
da própria história e do lugar social ocupado por cada um, constituem o pano de
fundo para que se venha a ser o que se é. Ou seja, na construção de uma
identidade própria, portanto, ler tem um potencial formativo e transformador na
medida de cada um e do ponto de vista de cada pessoa. A meu ver o ato de ler é
diferenciado e o mesmo texto pode ser interpretado de variadas maneiras pelos
diversos leitores. O livro existe através do leitor. É o leitor que empresta
significado ao livro. Que seria do autor sem o leitor?
Da vivência escolar no Instituto de
Educação dos chamados Anos Dourados ficou o contato com os poetas brasileiros:
Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac. Só mais tarde fui
apresentada a Drummond, Manuel Bandeira, Vinicius...
Hoje em dia sou uma grande leitora de
romances e de antropologia.
As leituras de Antropologia mudaram a
minha vida de tal forma que fiz um doutorado em Antropologia Social no Museu
Nacional /UFRJ e abri na PUC-Rio uma área de Antropologia e Educação nos finais
dos anos de 1980. Neste sentido, o ato de ler Antropologia transformou a minha
existência, deu um outro sentido e outro significado ao meu trajeto existencial
e profissional. Reinventei minha sensibilidade, minha visão de mundo,
representações e práticas cotidianas.
Na minha vida de leitora, destaco
três personalidades femininas: Maria João, de "Quatro Raparigas",
Justine, que dá nome ao primeiro volume do "Quarteto de Alexandria" de Lawrence Durrell
e Emma de "Madame Bovary", de Gustave Flaubert.
Fica de Flaubert a frase "Eu sou
Emma Bovary..." para ser interpretada por cada leitor de acordo com sua
história.
Hoje em dia escrevo artigos e tenho
várias pesquisas publicadas sobre o do
ato de ler, que poderiam ser nomeadas como pesquisas etnográficas sobre
representações e práticas de leitura em diferentes universos sociais.
Tania Dauster é professora da PUC - RJ