As palavras arfavam...ou Aro 16
Minha mãe me colocava perto do peito
e lia pra mim Robinson Cruzoé. Essa leitura do afeto marcou minha infância. As
aventuras de Robinson na ilha perdida no oceano me levavam mais pra perto
daquele som da respiração que veio mais tarde trazer uma sensação de compassos,
notas distribuídas pela vida de modo amoroso.
Mais tarde, fiquei um pouco distante
da leitura, me sentia um pouco à parte de tudo, eu tinha uma estranheza, era
assim na família, na escola, aliás a escola não me chamou para a leitura, tenho
pouca lembrança desse exercício, mas a leitura ficou traduzida em mim como o
mundo das emoções e isso foi bom. Desci muito o morro do Parque Guinle de
bicicleta, corria com destreza, as mãos soltas no ar e eu em cima de um aro
16... As emoções ficaram e a leitura se foi por longos anos.
Cresci, assim como meus cabelos e
intuições: eu era de outro mundo. Meu universo não tinha o enquadramento que
todo o restante estava revestido. Tenho pouca ligação com a família, mas meu
avô me chamou a atenção para um fato bem interessante: estávamos em Petrópolis,
onde ele tinha uma casa avarandada com jardim. Certa vez, minha avó estava
brincando comigo no jardim quando avistei meu avô andando a passos lentos com a
cabeça inclinada para o alto, usando uma boina francesa, fiz menção de o chamar
ao que fui interrompido pela minha avó: “não, menino, deixa seu avô, ele agora
está pensando...”; fiquei intrigado e mais tarde entendi que ali estava um pensador,
meu avô era o Alceu de Amoroso Lima, um homem altíssimo, que mais tarde veio a
me dar de presente uma frase importante na minha vida.
Até me interessei por outras coisas, o cinema,
por exemplo, frequentava o Paissandu, queria entender Godard e tantos outros
cineastas, tinha uns 16 anos nessa época... eu vivia uma confusão, passei a me
interessar por música: os clássicos, Pixinguinha, chorinho... fui levado a
escolher uma profissão: o jornalismo. Fui aluno da PUC, logo vi que não era meu
caminho mesmo..., até achei interessante essa história de escrever, mas decidi
estudar música. O som era a minha palavra. Já tinha passado muito tempo ouvindo
o Rock’n Roll, tudo aquilo de comportamento desse movimento, não tinha tempo de
ler um livro de papel, minha leitura, por muito tempo, foi sonora, a música me
preencheu.
Dezembro de 1970
Essa é a data da minha primeira aula
de música, eu tinha 21 anos. Foi ali que comecei a me encontrar, era ouvi um
acorde e derramar uma lágrima, emoção e muito estudo. Conheci a leitura do som,
a ternura, o movimento das pessoas, as alegrias alheias, os acordes eram meus
personagens. Paulo Moura me trouxe muito
conhecimento, me levava para as gafieiras, me fazia ler o mundo assim, musicalmente.
Apenas uma sonata
Certa vez, em reunião familiar, fiz
uma pequena apresentação de uma sonata... meus pais já estavam preocupados com
meu futuro, afinal, música, sabe como é...e o emprego certo? Pois bem, minha
mãe, acho que em uma tentativa de que meu avô me convencesse de seguir o jornalismo,
o convidou para um almoço em família e na ocasião toquei uma sonata. Ao final,
a família aplaudiu e senti que todos esperavam o comentário do Alceu. Ele meu
salvou. Disse em bom som: “até que enfim um artista na família.” E aquela
sonata, frases barrocas em flauta, e improvisos a serviram de presente nos seus
últimos momentos de vida.
De volta aos livros
Ana, minha mulher, é leitora voraz;
por causa disso, voltei, ultimamente, a rever meus livros e a buscar outros.
Lembrei-me de “Confesso que Vivi”, do Pablo Neruda. É dele uma passagem que me
traz à lembrança o poder da palavra enquanto memória e imagem; lembro-me dele
falando sobre comida, algo como cor, odor, uma descrição tão precisa que quando
estou diante de um bom cenário como aquele retorno ao que li. Vejo muitas vezes
em leituras que percebo a feminilidade, a emoção, a curiosidade ... e a música
vem à tona. A palavra modula, nos dá a possibilidade de mudança, é intensa,
enfim, a palavra tem musicalidade.
Hoje leio muito e não obedeço a
regras. Leio o que acho bom e importante. Estou em um momento de ler tudo da
Marina Colasanti, genial escritora. Nélida Pinon também é fantástica! Adoro
Veríssimo que começa apontando um fato pra lá de corriqueiro e termina, em
pouco espaço, em um tratado filosófico. Gosto muito da acidez do Jabor. Admiro
também a precisão das escolhas de José Castello, crítico de Literatura. Essas
pessoas são interessantes, têm o que dizer, gosto de Rubem Fonseca, Rui Castro,
de livro de memória de gente interessante.
Sabe, eu tenho uma coisa... eu digo:
lê, que é isso que a gente vai guardar.
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