SERGIO CABRAL

SERGIO CABRAL

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O som: uma leitura de mundo - Mauro Senise (músico)


As palavras arfavam...ou Aro 16

Minha mãe me colocava perto do peito e lia pra mim Robinson Cruzoé. Essa leitura do afeto marcou minha infância. As aventuras de Robinson na ilha perdida no oceano me levavam mais pra perto daquele som da respiração que veio mais tarde trazer uma sensação de compassos, notas distribuídas pela vida de modo amoroso.
Mais tarde, fiquei um pouco distante da leitura, me sentia um pouco à parte de tudo, eu tinha uma estranheza, era assim na família, na escola, aliás a escola não me chamou para a leitura, tenho pouca lembrança desse exercício, mas a leitura ficou traduzida em mim como o mundo das emoções e isso foi bom. Desci muito o morro do Parque Guinle de bicicleta, corria com destreza, as mãos soltas no ar e eu em cima de um aro 16... As emoções ficaram e a leitura se foi por longos anos.
Cresci, assim como meus cabelos e intuições: eu era de outro mundo. Meu universo não tinha o enquadramento que todo o restante estava revestido. Tenho pouca ligação com a família, mas meu avô me chamou a atenção para um fato bem interessante: estávamos em Petrópolis, onde ele tinha uma casa avarandada com jardim. Certa vez, minha avó estava brincando comigo no jardim quando avistei meu avô andando a passos lentos com a cabeça inclinada para o alto, usando uma boina francesa, fiz menção de o chamar ao que fui interrompido pela minha avó: “não, menino, deixa seu avô, ele agora está pensando...”; fiquei intrigado e mais tarde entendi que ali estava um pensador, meu avô era o Alceu de Amoroso Lima, um homem altíssimo, que mais tarde veio a me dar de presente uma frase importante na minha vida.
 Até me interessei por outras coisas, o cinema, por exemplo, frequentava o Paissandu, queria entender Godard e tantos outros cineastas, tinha uns 16 anos nessa época... eu vivia uma confusão, passei a me interessar por música: os clássicos, Pixinguinha, chorinho... fui levado a escolher uma profissão: o jornalismo. Fui aluno da PUC, logo vi que não era meu caminho mesmo..., até achei interessante essa história de escrever, mas decidi estudar música. O som era a minha palavra. Já tinha passado muito tempo ouvindo o Rock’n Roll, tudo aquilo de comportamento desse movimento, não tinha tempo de ler um livro de papel, minha leitura, por muito tempo, foi sonora, a música me preencheu.

Dezembro de 1970

Essa é a data da minha primeira aula de música, eu tinha 21 anos. Foi ali que comecei a me encontrar, era ouvi um acorde e derramar uma lágrima, emoção e muito estudo. Conheci a leitura do som, a ternura, o movimento das pessoas, as alegrias alheias, os acordes eram meus personagens.  Paulo Moura me trouxe muito conhecimento, me levava para as gafieiras, me fazia ler o mundo assim, musicalmente.

Apenas uma sonata

Certa vez, em reunião familiar, fiz uma pequena apresentação de uma sonata... meus pais já estavam preocupados com meu futuro, afinal, música, sabe como é...e o emprego certo? Pois bem, minha mãe, acho que em uma tentativa de que meu avô me convencesse de seguir o jornalismo, o convidou para um almoço em família e na ocasião toquei uma sonata. Ao final, a família aplaudiu e senti que todos esperavam o comentário do Alceu. Ele meu salvou. Disse em bom som: “até que enfim um artista na família.” E aquela sonata, frases barrocas em flauta, e improvisos a serviram de presente nos seus últimos momentos de vida.

De volta aos livros

Ana, minha mulher, é leitora voraz; por causa disso, voltei, ultimamente, a rever meus livros e a buscar outros. Lembrei-me de “Confesso que Vivi”, do Pablo Neruda. É dele uma passagem que me traz à lembrança o poder da palavra enquanto memória e imagem; lembro-me dele falando sobre comida, algo como cor, odor, uma descrição tão precisa que quando estou diante de um bom cenário como aquele retorno ao que li. Vejo muitas vezes em leituras que percebo a feminilidade, a emoção, a curiosidade ... e a música vem à tona. A palavra modula, nos dá a possibilidade de mudança, é intensa, enfim, a palavra tem musicalidade.
Hoje leio muito e não obedeço a regras. Leio o que acho bom e importante. Estou em um momento de ler tudo da Marina Colasanti, genial escritora. Nélida Pinon também é fantástica! Adoro Veríssimo que começa apontando um fato pra lá de corriqueiro e termina, em pouco espaço, em um tratado filosófico. Gosto muito da acidez do Jabor. Admiro também a precisão das escolhas de José Castello, crítico de Literatura. Essas pessoas são interessantes, têm o que dizer, gosto de Rubem Fonseca, Rui Castro, de livro de memória de gente interessante.

Sabe, eu tenho uma coisa... eu digo: lê, que é isso que a gente vai guardar.

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